Capítulo 12
Medo de Mudança
Osol ainda saía por detrás das montanhas de Kalos, e a neblina ainda pairava sobre Lumiose. Era exatamente naquele horário que as coisas começavam a funcionar, que as lojas que fechavam durante a noite apagavam suas luzes e deixavam o Sol ter sua chance de iluminar a cidade também. De manhã, cedinho, as ruas ainda começavam a ficar movimentadas, não havia tantos carros ou Gogoats transitando pela cidade.
Neste mesmo instante, Charlie estava no banheiro do Centro Pokémon. O rapaz ficou encarando seu rosto no espelho, com a luz apagada, permitindo que os suaves raios solares passando pela janela translúcida iluminassem-no. Percebeu algo que gostava de perceber todos os dias: Como seu rosto estava limpo. Seus cabelos estavam limpos. Suas roupas não eram as roupas desgastadas de antes, rasgadas, sujas e remendadas. Eram roupas novas.
Ele era como um novo Charlie, em uma fase completamente nova de sua vida. Ele olhou para trás, e percebeu seus amigos dormindo. Serena ormindo com uma paz de espírito tamanha, como se a Bela Adormecida tivesse saído do livro e ido visitá-lo. Calem dormia sobre algumas camadas de um papel plastificado descartável. Isso fê-lo rir sozinho.
Charlie não havia parado para reparar como as últimas semanas tinham-no mudado. Ele encontrou pessoas que jamais pensou que encontraria, que lhe ofereceram uma mão amiga e o tiraram de todos os seus problemas, sem o julgar (na maior parte do tempo, pelo menos) e o tratavam como um verdadeiro amigo.
E exatamente por isso eu precisava fazer aquilo.
Ele saiu do banheiro com calma e tomou todo o cuidado do mundo para não fazer barulho. Claro, já estava acostumado com isso, e não lhe era nenhuma dificuldade. Porém, não esperava tropeçar em um dos vários nécessaires de Calem. E todos tinham algo que fazia barulho, em meio a tantos artigos aleatórios.
O rapaz permaneceu imóvel, mas Serena se mexeu na cama, e as pálpebras lentamente se abriram, revelando seus belos olhos azulados, como cortinas se abrindo e revelando o céu matutino por detrás. Ela acompanhou com o olhar Charlie parado e de pé:
— Onde você está indo? — sua voz ainda rouca perguntou, coçando os olhos.
Charlie fez um sinal com as mãos, a tranquilizando.
— Não se preocupe, eu volto logo. — ele sussurrou.
— Não, eu vou com você! — ela se prontificou, dando uma risadinha e literalmente pulando da cama.
Charlie a olhou de cima a baixo.
— Princesa, você é linda, mas tem certeza de que quer sair na rua de pijama e pantufas de coelhinho? — perguntou ele, sorrindo.
A garota sorriu e colocou uma mecha dos fios louros atrás da orelha. Ela se levantou e buscou um pequeno estojinho, indo em direção ao banheiro, evitando ao máximo fazer qualquer barulho. Quando cruzou Charlie, virou-se de costas e parou, olhando para cima para alcançar seus olhos verdes:
— Não vá aonde você quer ir sem mim. — disse ela.
— Certo. — ele respondeu com simplicidade, sorrindo.
A garota adentrou o pequeno banheiro e fechou lentamente a porta. Charlie permaneceu imóvel. No mesmo instante que ouviu o som do chuveiro esquentando água, ele correu com agilidade para a porta do quarto, às pressas, e cruzou o corredor correndo. Como deslize, acabou deixando a porta bater, mas sequer parou para checar se Serena reparou no som, apenas correu e desceu as escadas. Correu cruzando a entrada do Centro. Correu pela porta de vidro, quase não dando tempo de ela abrir para que ele passasse.
Jogou a cabeça para os lados em movimentos rápidos, procurando onde ir. As memórias ainda lhe estavam frescas na mente, como o cheiro de terra molhada logo após a chuva. Correu pelo formigueiro que era Lumiose, desviando das pessoas ainda em um estado de zumbis, sonolentas. Então escondeu-se em um beco, entre o Boulevard Sul e Norte, que praticamente interligava os dois, do lado oposto à saída para a Rota 13. Então ouviu uma voz doce e ofegante ecoando em meio aos murmúrios aleatórios:
— Me espera!
Charlie socou a parede na qual estava recostado, praguejando em sussurros. Serena aproximou-se dele, vestindo sua roupa do estilo de sempre, meio amassada porque ela provavelmente devia ter desligado o chuveiro e colocado-a correndo, às pressas. Estava sem maquiagem, e os cabelos um pouco despenteados. Ainda assim, ela conseguia ser maravilhosa.
— Precisa de alguma coisa, princesa? — perguntou fingindo inocência.
— Eu disse para não sair sem mim! — repreendeu-o ela.
Charlie afastou-a do beco, voltando à calçada. Ele virou de costas e correu os olhos, vendo se encontrava algo. Ou alguém. Serena, todavia, batia o pé com impaciência.
— Desculpe, Serena, mas não posso deixar que vá comigo. — ele segurou-a pelos ombros. Serena foi capaz de ver algo esquisito nos olhos de Charlie. Eles sempre eram verdes e misteriosos, como se escondessem algo. Mas desta vez pareciam desesperados, como duas esmeraldas prestes a se romperem.
— E-Eu não posso… — Serena balbuciou, baixinho.
Antes que ele pudesse perguntar “por que?”, ouviu o som de passos cada vez mais altos. Olhou para trás, no beco, mas nada viu. Antes que pudesse empurrá-la para longe, reparou movimento quase nulo naquela área que comumente era lotada. Alguém estava do outro lado da rua, porém, os observando. As mãos nos bolsos rasgados da bermuda. Cabelos grossos e sem brilho, expressão maliciosa e vestes acabadas. Como… Como Charlie quando eles o conheceram.
Por algum motivo, o coração de Serena bateu mais forte. E não no sentido positivo.
— Princesa, — sussurrou Charlie em seu ouvido. — corra o mais rápido que…
— Nem. Tente.
Charlie sentiu uma gota fria de suor escorrer pela lateral de sua face.
O som dos passos era completamente nítido. De suas costas, surgiram duas pessoas. Antes que fosse capaz de vê-los, um deles puxou-lhe para trás e pressionou um pano contra seu nariz e sua boca, sentindo um cheiro forte entrar por suas narinas. Não teve tempo de gritar, e ninguém o viu. Mas alguém fazia o mesmo com Serena. Ver a garota se debatendo, com o grito agudo abafado pelo pano e os olhos azuis cheios de pânico foi a última coisa que se lembrava antes de perder a consciência.
...
Por que sempre esqueciam de Calem?
O rapaz perguntou-se isso enquanto andava na calçada, trombando em todos que passavam, porque estava fitando um mapa. E, a propósito, ele não estava ajudando em nada. A Imprensa de Lumiose parecia um lugar interessante para se visitar, porém não conseguiria encontrá-la. Na verdade estava perdido.
Foi quando avistou um carro azulado encostado na calçada, com uma plaquinha acima escrita “TÁXI”. Sabendo do que se tratava, ele foi discretamente até o carro e bateu no vidro. Tomou um pequeno susto quando o vidro escuro começou a baixar sozinho.
— Hm… Pode me levar até este lugar? — perguntou, apontando no mapa.
O taxista mal parou para olhar, apenas acenou com a cabeça sem ânimo e deu uma tragada no cigarro que carregava. Era jovem, cabelos castanhos divididos e olhos castanho-escuros. Calem entrou no carro pelo banco da frente. Haviam esquecido de avisá-lo que devia usar o banco de trás. O motorista fez uma careta, mas não o repreendeu.
E Calem ficou observando pelo vidro as pessoas passando. Os prédios, que pareciam todos iguais, passando. E, aparentemente sem motivo, ele sentiu saudades de casa. Onde suas responsabilidades eram limitadas, e não precisava fazer nada demais a não ser se divertir na mansão o dia todo.
Agora olhava para frente. Estavam em silêncio, enquanto o rádio tocava ao fundo alguma música de décadas atrás. Porém, algo aconteceu que massacrou completamente a paz do momento.
Um Pokémon pequeno, um Bunnelby, assim como ele encontrara semanas atrás na Floresta de Santalune, decidiu atravessar a rua. O taxista buzinou alto, chamando a atenção de todas as pessoas que andavam. O Bunnelby olhou, paralisado. Foi como se os instantes seguintes passassem em câmera lenta para Calem. O táxi avançou pelo pequeno Bunnelby. O rapaz gritou. Ouviu os barulhos do Pokémon tentando escapar embaixo de si.
Em seguida, sentiu a roda escorregar em algo, somado com o som estridente do ruído do Pokémon. Todos pararam para olhar, até que alguém se aproximou mais e deu a sentença final:
— Morreu.
Calem desceu do carro, sem saber exatamente o porquê. Olhou para o Pokémon, que já não se parecia mais como antes. Estava em carne viva, ensangüentado. Nojento. O taxista deu partida no carro novamente, sem problemas. Como se nada tivesse acontecido. Logo as pessoas também voltaram a andar e continuar sua rotina. Lumiose não podia parar por causa de um Pokémon atropelado.
E Calem permaneceu olhando para a cena do crime. Tremia muito, ainda estava em choque. Foi como se conseguisse ver uma mulher de rubro e preto levar a alma do pequeno Pokémon, mas assim que piscou, percebeu que não tinha nada. Nada além dos restos do Bunnelby jogados na rua, como se fossem nada.
A culpa lhe percorreu. Se não tivesse decidido ir àquele lugar naquele exato instante, se tivesse decidido fazer outra coisa, aquela criatura estupidamente saltitante estaria viva. Era culpa dele. E agora o Pokémon não veria mais o sol nascer. Por que se sentia assim? Tão culpado?
Nunca sentiu tanta vontade de se aproximar de um Pokémon e acariciá-lo. Agora era tarde demais. Foi como se sua Pokéfobia se esvaísse naquele momento, tomada pela sensação de querer reverter tudo. De querer ver aquele Pokémon saltar de novo. Mas era tarde demais.
...
— S-Serena? SERENA! — a voz fez eco na escuridão em que estava cercado.
As luzes se acenderam e Charlie se viu amarrado a uma cadeira em um cômodo sujo, abandonado. As paredes mofadas e completamente despidas de qualquer cuidado ou higiene. E pessoas, muitas pessoas, todas encarando-o. Todos rapazes e algumas poucas moças, mal encarados e sujos, muito sujos. O pior era ele conhecer cada uma daquelas faces.
Foi quando percebeu uma cadeira de costas em uma direção totalmente oposta a ele. A cadeira se virou, revelando uma figura alta. Um homem de vinte anos, de cabelos escuros caídos aos tufos pela cabeça. Usava um terno um pouco gasto, contrastando com as vestes de todos os outros presentes. Em sua boca um charuto, e óculos escuros enegrecidos, que escondiam seus olhos, de forma que fosse impossível saber o que ele estava olhando.
— Há quanto tempo, Charles. — permitiu sua voz grossa ecoar após tirar o charuto da boca. — Achei que não se lembrava de mim.
Charlie, ao vê-lo, ficou imóvel. Foi como se seus olhos arregalassem involuntariamente, o suor escorresse sem que estivesse com calor. Ficou encarando aquela figura irônica, que sorria de uma forma maliciosa. E ele sabia muito bem que aquele sorriso não era de alegria.
— Há como esquecê-lo? — cuspiu as palavras com nojo em resposta.
O homem riu, sentando-se novamente na cadeira.
— Aparentemente sim. — ele fitou a fumaça subindo. — Imagino que esqueceu de que eu sei de tudo. Que eu vejo tudo. Tudo. — ele enfatizou a última palavra com satisfação. — Como um Deus. Sou como o Deus de Lumiose.
Ele se levantou da cadeira e segurou os braços atrás das costas, enquanto se aproximou de Charlie. O rapaz começou a se remexer na cadeira, como se tentasse se soltar, porém de nada adiantou. Parecia tremer. O homem não lhe tocou, apenas diminuiu o tom de voz:
— Achei estranho apenas você não ter vindo nos encontrar, mesmo estando na cidade. Parecia até mesmo que não fazia questão de nos ver… — novamente um sorriso.
— O que você quer, Marc? — respondeu Charlie logo em seguida.
— O que eu quero? Como assim? — Marc se atirou para trás com a mão no peito. — Estou ofendido! Acha que eu iria reunir meu irmão aqui comigo só pra pedir alguma coisa?
Irmão.
Em um movimento rápido e repentino, totalmente inesperado, Marc desferiu um soco no rosto de Charlie. O rapaz sentiu uma enorme dor, como se um cometa lhe acertasse em cheio. Porém, nada fez. Não gritou. Não chorou. Ele tentou ficar parado, como se nada tivesse acontecido, ainda que a sensação do punho em seu rosto ainda estivesse fresca.
— Você nos traiu, seu idiota. — gritou Marc. — Você fugiu! — mais gritos. — E tem a coragem de colocar os pés novamente em nossos domínios, como se nada tivesse acontecido.
Ele voltou a andar para trás tranquilamente. Sua cabeça agora estava virada para o teto acabado e aos pedaços do cômodo, que poderia ceder a qualquer in - Por quêstante. Deu mais uma tragada e permitiu que a fumaça escura subisse no ar com toda a suavidade.
— Estão sentindo esse cheiro? — perguntou ele aos presentes, que assentiram sem sequer esperá-lo terminar de falar. — Esse cheiro doce e enjoativo. Parece - Por quê vvocê até… — ele ponderou por um tempo com a mão no queixo, falsamente pensativo. — Xampu.
E apontou para os cabelos claros de Charlie. Brilhantes. Cheios de vida. E cheirosos. Agora Marc rodeava-o, com tranquilidade suficiente para fazer o irmão mais novo estremecer. A cada passo ouvido, seu coração tentava atirar-se para fora a boca. Até que então ouviu novamente o som da voz:
— Parece que você foi para uma vida melhor Charlie. — disse Marc com um falso tom de generosidade. — Você conseguiu finalmente subir na vida. Acha que nós não vimos os ricassos com que você está andando? — desta vez o sorriso foi um pouco maior.
Charlie pensou em qualquer coisa para dizer. Qualquer coisa. Fez seus lábios se abrirem, prontos para falar alguma coisa, porém, foi interrompido antes mesmo de dizer. Marc novamente fez as palavras carregadas de generosidade nojenta saírem de sua boca com cheiro de fumo.
— Eu, como líder da gangue, posso perdoar sua traição. — disse. — Posso mesmo.
— Eu não preciso do seu perdão. — retorquiu Charlie com a confiança que não tinha, como se as palavras não fossem sustentadas pela sua situação atual.
Seu irmão riu alto.
— Ahh, sim, você precisa. — garantiu, se aproximando. Charlie sentiu com mais intensidade o cheiro do charuto. E com mais intensidade ainda o cheiro do mal, das mentiras, do cruel. — E você só tem que fazer uma coisa, Charlie. Uma mísera e pequena coisa, tão insignificante como você. — sussurrou, com um tom perturbador o suficiente para fazer um arrepio percorrer todo o corpo do garoto.
Ele se apoiou na cadeira, ficando face a face com Charlie, de forma extremamente desconfortável para o garoto. Evitava encarar o irmão mais velho. Era como se conseguisse ver aqueles olhos rancorosos e cruéis brilhando em fogo, escondidos por detrás da fortaleza enegrecida dos óculos escuros.
— Você só tem que trazer a patricinha e o mauricinho aqui pra mim. Só isso, Charlie. — concluiu ele, usando um tom de voz que ridicularizava sua sentença, como se quisesse intensificar a simplicidade dela. — Não é difícil, e eles confiam em você. Sei que o treinei bem pra enganar os outros. O que acha, Charlie? — indagou. — Em nome dos velhos tempos? Após isso você estará perdoado, e te deixarei voltar pra nossa gangue. — ele estendeu a mão enluvada como se para um cumprimento, mesmo sabendo que o irmão estava atado.
Charlie levantou a cabeça, preparando-se para responder. Marc permitiu que seus lábios distorcessem um sorriso pequeno. Em seguida, o garoto abaixou a cabeça, disparando dos lábios um cuspe que acertou em cheio a mão do irmão mais velho.
— Você é escroto. — disse Charlie com desprezo.
O sorriso se desfez, e com exceção da mão limpando-se na calça, os demais músculos do irmão sequer se mexeram. Então, mais uma vez inesperadamente, sacou um canivete. Antes que Charlie pudesse se arrepender de ter dito qualquer coisa, o homem desatou uma de suas mãos. Marc foi atrás de Charlie e começou a pressionar o braço contra a cadeira, enquanto sua cabeça permanecia do lado da do irmão mais novo, vendo-lhe gemer de dor e tentando esconder.
— Larga. Por favor. — implorou Charlie com total fraqueza.
— Eu já quebrei seu braço três vezes, Charlie. Posso quebrá-lo de novo. — era assustadora a forma fria com que Marc conseguia dizer aquelas coisas. — Mas eu tenho algo melhor pra essa ocasião.
Ele largou o braço de Charlie, que respirou aliviado, porém amarrou-o novamente à cadeira. Em seguida saiu de perto do garoto. Jogou a bituca de cigarro no menino, e com a outra mão, fez um sinal para os outros, que apenas observavam a cena.
Alguns homens saíram, e logo em seguida voltaram carregando algo que fez o coração de Charlie tremer por inteiro. Lá estava Serena. Desacordada, ainda como uma bela adormecida, contrastando completamente com aquele ambiente hostil e horroroso. Marc sentou-se em sua cadeira, fez uma ponte com as mãos, entrelaçando os dedos, e cruzou as pernas.
— Não. Não. — balbuciou Charlie se debatendo na cadeira. — Mande largarem ela, Marc! Ela não tem nada a ver com isso!
Marc gargalhou alto.
— E eu não sei? Mas a graça está aí: — falou, com palavras carregadas de maldade. — Fazer os inocentes pagarem, para deixar os culpados ainda mais culpados.
Charlie tremeu novamente. Seu corpo se desmontava sozinho.
— Se você já tem ela aqui, por que me pediu… — a voz saiu com uma fraqueza e insegurança tamanha, que foi interrompida sem problemas pelo irmão:
— Bem, eu ainda preciso do outro rapazinho. Mas eu estava mesmo é o testando. E você falhou, Charlie. Falhou feio. Muito, muito feio. — ele sorriu cinicamente, enquanto viu o irmão desolado do outro lado do cômodo. — Acordem a garota. — ordenou.
Um dos rapazes que a carregou se aproximou da garota, com um pequeno pesar. Ele olhou discretamente para seu chefe, que assistia sem hesitar. Ao ver aqueles óculos escuros, fechou os olhos, e desferiu um tapa no rosto da garota. Não tão forte, mas suficiente para fazer um barulho estridente que fez eco pelo cômodo até então silencioso.
— Não! — gritou Charlie, como se tivesse sentido o golpe em si mesmo.
Os olhos azuis da garota se abriram quase iluminando o cômodo. Sua cabeça se moveu para os lados, e percebeu estar cercada por pessoas que a encaravam como se fosse uma ferida nojenta. Ela era do tipo que não julgava alguém simplesmente pelas vestes ou olhar, porém, seu subconsciente nessa hora sabia que não podia vir coisa boa. Todavia, ela disse, com sua voz doce e encantadora, mesmo naquele lugar perturbador:
— Charlie? Onde estamos? — perguntou.
Marc chamou sua atenção.
— Olá princesinha. — disse. — Alguém já lhe disse que você é realmente maravilhosa?
Serena suou frio, enquanto percebeu as outras pessoas rindo ao seu redor. Ela estava nervosa. Também tremia.
— E-Eu não gosto que me chamem assim. — foi a única coisa que disse.
— Ah, mil perdões. — disse Marc.
O homem se levantou e olhou-a de lado. Agachou para ficar de sua altura. Serena tentava não encará-lo, apenas olhava para Charlie completamente assustada, como se implorasse por uma explicação. Como se implorasse para que ele dissesse que tudo ficaria bem.
Mas ele não disse nada.
Marc tocou-a no rosto, o que a fez estremecer. Em seguida ele puxou sua face para que ficasse de frente à dele. Queria ver aqueles olhos azuis cheios de medo de perto. Ela seguiu o movimento, relutante.
— O que acharia de se juntar a nós? — perguntou, novamente sem qualquer pesar em suas palavras. — Sabe quanto uma vagabunda loira e branquinha ganha em uma noite?
Ela tentou se levantar, mas a empurraram novamente na cadeira. Empurraram-na como se fosse um objeto. Sempre a ensinaram a ser respeitosa. Sempre lhe trataram como uma princesa. Sempre ensinaram-lhe que as mulheres devem ser respeitadas e tratadas com toda a delicadeza de uma flor. Porém ali aquilo completamente desapareceu, e isso a deixou ainda mais assustada.
— Hein? — gritou Marc, ainda esperando uma resposta.
— Não senhor. — a voz saiu sem qualquer vida. Sem qualquer energia. Sem qualquer encanto.
Ele ficou de frente para ela. Jogou as mãos sobre seus ombros, e ficou completamente grudado a ela, deixando-a submissa. Ela não poderia se mover se quisesse. Ele sentiu sua respiração ofegante de medo, o coração palpitando como se quisesse explodir. Os dentes se batendo, como se tentassem se destruir. Isso apenas o fazia sorrir.
— O suficiente. — falou. — Só precisamos testar se você está apta para o cargo. — dito isso, se levantou.
— TIREM. AS. MÃOS. DELA. — gritou Charlie com todas as suas forças. Mas sua voz não era de um herói. Era de total desespero. Logo em seguida tamparam sua boca, o impedindo de gritar também. O irmão balançou a cabeça negativamente
— Charles Stuart! Que modos são esses? Ameaçando o Deus de Lumiose? Você se esqueceu que não tem poder algum aqui? — indagou.
Ele levantou a mão e friccionou o dedo médio e o polegar, reproduzindo um estalo.
— Tirem-lhe as roupas! — ordenou.
Serena viu vários homens se aproximando. Ela iria se levantar, mas a seguraram firme pelos pulsos, de forma que a machucasse. Outro tampou-lhe a boca e segurou sua cabeça, a impedindo de gritar ou se mexer. Ela não entendia por que faziam aquilo, e isso tornava tudo mais aterrorizante. Não sabia o que viria depois. Em sua cabeça, as coisas nunca chegariam ter começado como começaram. Suas noções de beleza de mundo foram totalmente destruídas, como um espelho que se parte em milhões de pedaços.
Baixaram seu vestido, deixando-a apenas com as roupas de baixo. Ela queria gritar, mas não pôde. Não conseguia se mover. As lágrimas começaram a lhe descer pela face, como uma última tentativa de exteriorizar aquilo que estava sentindo. Charlie sentia ainda mais dor ao observá-la. A sensação de ser impotente lhe fincava as garras. A pior sensação, a de ver aqueles lindos lagos azuis derramarem as águas pelo rosto pálido de Serena, lhe golpeava na cara, mais doloridamente que qualquer soco.
Não importava o quanto se mexesse, nenhum dos dois nunca conseguiria se soltar. Restava apenas se encararem com medo. Ela não entendia por que estava de roupas de baixo. Tentava fechar as pernas, mas as abriam novamente quantas vezes fossem precisas. Seguravam-nas, deixando sua pele branca marcada. Terror. Tocaram-lhe nas roupas de baixo inferiores.
O inesperado, porém, aconteceu.
Uma chama surgiu de algum lugar não identificado e começou a se espalhar pelo cômodo. Houve alguns gritos e comentários, mas o fogo logo ganhou tamanhas proporções a ponto de que fosse um verdadeiro incêndio. Enquanto o desespero pairava, Serena foi largada. O mais surpreendente era que Charlie sentiu algo como uma navalha cortar as cordas que o atavam, conseguindo se soltar.
O rapaz não parou para tentar entender. Aproveitou-se enquanto todos buscavam uma saída e cruzou as chamas altas para alcançar Serena. Pegou as roupas e a devolveu. Ela não disse nada. Ele a ajudou a se vestir enquanto ela apenas acompanhava seus comandos, estática. Não tirava os olhos das chamas enquanto os soluços lhe vinham ocasionalmente, acompanhando as cachoeiras que desciam de seus olhos.
Algumas pessoas repararam que eles estavam fugindo e tentaram pegá-los, mas Charlie conseguiu despistar todos. Seus instintos estavam à flor da pele. Porém, quem tampava a porta era seu irmão mais velho, pela primeira vez com uma expressão que poder-se-ia dizer que era de raiva, exceto pelo fato de seus olhos permanecerem ocultos.
— Você…
Antes que pudesse terminar qualquer frase, um soco foi desferido em sua face. Charlie parou para reparar que sabia quem tinha feito isso. Pancham encarou seu dono, fazendo um sinal com a cabeça. Seu Pokémon sabia que ele faria aquilo. Seu Pokémon o seguiu. Seu Pokémon o salvou.
Charlie correu pela porta empurrando Serena. Estavam todos sujos de fuligem, algumas queimaduras pequenas, arranhões e hematomas. Antes de deixar o lugar, o rapaz olhou para trás e viu Marc. O homem, nas sombras, apenas deu um pequeno sorriso enquanto o fogo reinava ao seu redor.
— Charlie, darei a você um pequeno conselho de irmão. — falou ele com tranquilidade, fazendo uma pequena gota de suor frio escorrer pela lateral da face do rapaz. — Não retorne a Lumiose depois disso. Porque se você retornar… — ele fez uma pequena pausa. — Eu vou fazer você e seus amiguinhos sofrerem como eles nunca imaginaram. Hoje foi apenas uma amostra grátis. Mas na próxima…
Ele estendeu o braço e colocou o polegar levantado com o indicador apontando a ele, como se insinuasse uma arminha.
— O preço vai ser alto. — disparou na arma de mentira. — E vocês vão pagar.
Charlie correu o mais rápido que pôde, como se as sombras quisessem arrastar seus pés de volta para aquele pesadelo em chamas. Como se as coisas pudessem ficar pior. Como se fosse correr e não chegar a lugar nenhum. Ele não conseguia ver o rosto de Serena, e temeu acreditar que aquilo fosse uma coisa boa. Pancham os acompanhava.
Quando saiu, olhou para o Pokémon e se abaixou. Ele engoliu em seco, enquanto a criatura permanecia com seu olhar mal-encarado.
— Você nos salvou, Thanos. Muito, muito, muito obrigado mesmo. Não tenho como lhe agradecer. — falou Charlie, com a voz mais fraca do que gostaria.
Da sombra, surgiram duas figuras. Um filhote de felino de pelo acastanhado, com uma pequena pelugem na cabeça alaranjada, como fogo. Olhos corajosos. Como o fogo que eles tinham acabado de ver. E um Pokémon como aqueles que as pessoas montavam para ir de um lugar a outro em Lumiose, apenas menor. Uma Litleo e um Skiddo. Ele se lembrava deles.
— V-Vocês… Vocês me acharam. E me salvaram. — antes que pudesse fazer qualquer coisa a mais, ouviu um pequeno gemido de medo de Serena.
Ele se virou para a garota. A cena pela qual passaram era aterrorizante. Porém, o rosto de Serena conseguia ser pior que tudo. Os olhos marejados, avermelhados de tanto permitir que as lágrimas escorressem. As palavras lhe saíam cuspidas, como se não conseguisse formar uma sequer frase completa. Estava toda machucada. Algumas queimaduras. Vergões. Mas o maior machucado era em sua alma.
— Serena… — por alguns instantes buscou em sua cabeça qualquer coisa para falar. Qualquer coisa. — Está tudo bem agora. Está tudo bem.
Estavam os dois sentados na calçada. Ela balançou a cabeça, e permitiu que mais lágrimas lhe caíssem pela face. Onde estava o mundo perfeito que queria conhecer? Onde estavam as diferentes pessoas que queria encontrar? Onde estava a mágica pela qual esperou por quinze anos para ver?
Ela, por sua vez, viu a expressão de Charlie. Ela nunca o vira tão assustado em todo o período de jornada. Era sempre risonho, sempre descontraído. Mas desta vez estava aterrorizado, quase tanto quanto ela. E mais importante, a culpa lhe perseguia. Por ver Serena daquele jeito. Por permitir que aquilo acontecesse. Por não ter dito que o mundo não era apenas um jardim florido
— Vai ficar tudo bem, princesa. — falou ele, tremendo, como se de dentro de si algo quisesse sair, e não conseguisse. — Vai ficar tudo bem.
— Charlie… — a voz saiu como um sussurro, tamanha a fraqueza. — C-Como você não está chorando? — indagou.
O rapaz se aproximou dela e se ofereceu para limpar suas lágrimas. Ela recusou ao virar a cabeça.
— Tem um momento — disse. — em que você segura tanto as lágrimas… Que uma hora você esquece como deixá-las cair. — respondeu, engolindo em seco.
E ficaram assim. Os dois. Parados. Se observando. Serena chorava. Charlie não.
Naquele momento Calem apareceu correndo. Ele viu a prima naquele estado, e logo se aproximou. Por um instante ele não se preocupou em sujar-se na calçada. Tocou-lhe no rosto com as mãos. Ela o abraçou, com tanta força que Charlie sentiu uma pontada de ciúmes, misturado com todo o resto de culpa.
— Eu fiz uma coisa horrível, Serena. — Calem recostou seu queixo no ombro da garota. Uma pequena lágrima escorreu de seus olhos. Mas ele se sentia seguro. Ela não poderia o proteger, mas ele se sentia seguro naquele abraço.
Ela concordou com a cabeça. Ele sentiu isso em seu ombro.
— N-Não se preocupe, Cal. — ela disse, esforçando-se para fazer com que sua voz saísse. — Aconteceu tanta coisa horrível agora… Eu não… Eu não…
Ele largou o abraço e tocou o rosto da prima, limpando suas lágrimas com a mão. Ela deixou. Ambos tremiam ainda. De medo. De insegurança.
— Eu não quero ficar aqui, Cal. As coisas não são bonitas, não são mágicas. Eu quero ir embora daqui, Cal. Quero ir embora.
Calem assentiu.
— Amanhã bem cedo vamos sair daqui. Bem cedo. — garantiu ele.
— Não é seguro, ficarmos aqui, Cal. Não é seguro. — ela balançou a cabeça, frágil.
Ele a abraçou mais uma vez. Ambos se seguraram com enorme força.
— Vai ficar tudo bem. — ele garantiu. Ele não sabia se ficaria tudo bem, mas ele sentia que pelo menos tinham um ao outro. — Vai ficar tudo bem.
E saíram juntos em direção ao Centro Pokémon novamente. Era como se compartilhassem o mesmo sentimento. Como se as lágrimas de um pudessem tocar o outro. Não esqueceriam aquele dia tão simplesmente. E provavelmente passariam o resto do tempo conversando. Era disso que precisavam. Charlie ficou lá. Parado. Esquecido. Não o convidaram para voltar também. Ninguém o disse que tudo ficaria bem.
...
Eu estava voltando a passos lentos para o beco. Lá era meu lugar. Lá era minha casa. Trazia em minhas mãos algumas coisas que havia conseguido roubar de um café. Porém, não achei ninguém. Procurei pela escuridão por alguém. Onde estavam?
Ouvi alguns barulhos, e fui correndo checar. Era pequeno. Tinha quanto? Oito, nove anos…? Por aí. Vi meu irmão mais velho e alguns outros caras batendo em alguém. De verdade. Pra valer. Espancando. Ouvia os gemidos abafados do outro, como se implorasse aos céus por piedade. Deixei as coisas caírem sem querer ao ver aquilo. O sofrimento do outro cara. Como era ruim ver alguém sofrendo e não fazer nada.
Foi quando algum deles pegou uma corrente, dessas de ferro, e enforcou o homem. Seguraram-no. Ele se debateu. Tentou gritar. Chorou. Ele tentou viver. Mas acabou cedendo, e em alguns instantes vi sua vida se esvair. Como se fosse algo simples, que pudesse ser tirada a qualquer momento.
Vi Marc virar-se para mim naquele instante. Dei um passo para trás instintivamente, amedrontado. Eu não conseguia ver seus olhos. Foram raras as vezes em que eu consegui. Mas eu poderia adivinhar que estavam brilhando atrás dos óculos escuros. Ele se aproximou de mim. Tentei não recuar. Ele se abaixou e ficamos na mesma altura. Ele olhou pra mim.
— Não esquenta. — disse com simplicidade. — Um dia será você que fará isso também. — e afagou meus cabelos, como se eu fosse gostar da ideia.
Alguns encaravam como orgulho. Como uma coisa boa. Mas eu só conseguia pensar: "E se eu não quisesse ser assim?"
E se eu não quisesse fazer aquilo também?
0 Response to "Capítulo 12"
Post a Comment